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Desastre cultural

(sv)16 de abril de 2003

Saques no Museu Nacional de Bagdá dizimam, frente à apatia das tropas norte-americanas, testemunhos da história da civilização. A serviço de colecionadores internacionais, a população destrói a própria memória.

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Civil iraquiano anda pelas ruínas do Museu Nacional em BagdáFoto: AP

O esquema faz lembrar o tráfico de drogas nos morros do Rio de Janeiro. O jovem da favela faz o trabalho, ganha pouco por ele, e o chefão dá as coordenadas da zona sul. Durante os saques ocorridos no Museu Nacional do Iraque, na última semana, a situação pode ter sido parecida: pelo que tudo indica, a população miserável local roubou, liderada pelo crime organizado, que por sua vez cumpria as coordenadas ditadas por colecionadores ocidentais, sentados em suas belas casas em Paris, Londres ou Nova York.

Cumplicidade de funcionários -

"Os saques podem ser considerados a pior devastação desde o ataque dos mongóis. Os cofres do Museu não são facilmente localizáveis, para atingi-los é preciso pegar um elevador. Sem a cumplicidade de alguns funcionários, teria sido impossível aos saqueadores chegar até lá.

As reservas técnicas contêm tudo o que foi encontrado em escavações no país nos últimos 70 anos. Se elas foram realmente destruídas, então a memória cultural do Iraque está mesmo exterminada", analisa Walter Sommerfeld, professor de Estudos Orientais Antigos na Universidade de Marburg, ao diário Süddeutsche Zeitung.

Embora o acervo do Museu Nacional do Iraque possa ser comparado ao do Louvre, em Paris, ou ao do Pérgamo, em Berlim, o embargo econômico impediu até mesmo a compra de sistemas de alarme ou ar condicionado para suas instalações. No decorrer dos últimos anos, os milhares de objetos guardados ali estiveram expostos a oscilações de temperatura de até 50º. Os danos foram terríveis: inscrições desintegraram-se, peças de metal enferrujaram, esculturas tornaram-se irreconhecíveis.

Tropas apáticas -

Considerando que a última Guerra do Golfo provocou uma onda de saques em outras instituições do país, não era completamente imprevisível a possibilidade de um ataque ao Museu Nacional. O que surpreendeu foi a apatia das tropas norte-americanas, que não se dispuseram a defender os testemunhos de sete mil anos de história da civilização.

"Fiquei extremamente irritado com o fato de os soldados americanos terem dito que não estavam em condições de impedir o que aconteceu", declara o regente Daniel Barenboim em Berlim. Enquanto o Ministério do Petróleo, em Bagdá, vem sendo cuidadosamente patrulhado pelas forças norte-americanas, o Museu Nacional foi praticamente entregue aos saqueadores. "Dois tanques no pátio interno já teriam sido suficientes para assustar", lamenta a diretora-adjunta do Museu, Midal Amin.

Das geplünderte Nationalmuseum in Bagdad
As dimensões das perdas ainda são inestimáveisFoto: AP

Inscrições ainda não decifradas - Os invasores armados quebraram vitrines, arrombaram cofres e destruíram parte das reservas técnicas. As primeiras estimativas apontam o desaparecimento de mais de 170 mil peças: de esculturas assírias em bronze e estátuas religiosas a inscrições ainda nem decifradas por arqueólogos. Trata-se, em parte, da mais antiga literatura registrada na história da humanidade. O Museu Nacional havia sido reaberto em Bagdá há apenas três anos, quando os danos causados pela última Guerra do Golfo puderam ser enfim reparados.

Mercado internacional -

Se parte do material roubado em Bagdá vai brevemente ser oferecida nos bazares da periferia da cidade, há de se notar que inúmeros objetos da era babilônica irão certamente aparecer nos mercados de arte europeus e norte-americanos. Ou já nos armários de colecionadores milionários. Pois uma população miserável só invade um museu e rouba objetos cujo valor nem pode estimar, se conta com o apoio de uma máfia organizada, a serviço do comércio internacional.

"Os saques recentes não podem ser atribuídos a um vandalismo costumeiro ou a uma forma de desobediência civil, mas foram muito provavelmente coordenados pelo crime organizado e apoiados por marchands ocidentais", denuncia Michael Roaf, diretor do Instituto de Arqueologia da Ásia Menor na Universidade de Munique, ao Süddeutsche Zeitung. Afinal, todo o comércio ilegal de obras de arte não teria sentido se não houvesse um mercado disposto a absorver as peças roubadas.

Catálogo roubado - É improvável que os objetos roubados venham a ser reencontrados, mesmo porque havia no Museu somente um catálogo de registro, escrito à mão, também roubado. O recém-criado arquivo digital se foi da mesma forma, levado junto com todos os computadores existentes nas instalações do Museu. O que, obviamente, impossibilita o reconhecimento posterior de boa parte dos objetos desaparecidos.

"O mesmo já foi visto em relação às peças roubadas durante a Segunda Guerra Mundial. Algum dia, elas voltam à luz do dia e podem ser confiscadas, mas isso demora muito. Até então, cientistas e público irão sentir a dolorida falta das mesmas", resume Claus-Peter Haase, diretor do Museu de Arte Islâmica de Berlim ao diário Frankfurter Rundschau.