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Como se fosse reality TV

Soraia Vilela25 de março de 2003

Estetizada em forma de videogame, a guerra é transmitida pela mídia norte-americana como um jogo de futebol. Alheia à realidade ela foi no entanto confrontada com a outra face do conflito: a dos reféns, mortos e feridos.

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Imagens de mísseis sobre Bagdá: oferecidas como ataques e contra-ataques de um videogameFoto: ap

Durante sua passagem pela Feira do Livro de Leipzig, o escritor francês "dos escândalos", Michel Houellebecq, comparou as imagens da atual guerra do Iraque "a um jogo de futebol". Encenado "ao vivo" como um programa de TV, o conflito surge na tela como um mosaico de luzes e fumaça, cujo comando está nas mãos do irônico e indiferente secretário norte-americano da Defesa, Donald Rumsfeld. A narração televisiva faz jus ao título de transmissão esportiva: entusiasmada, cheia de altos e baixos, às vezes metafórica, às vezes beirando o irônico.

Ditadura do agora -

Aposta-se, acima de tudo, na sensação ótica, onde o mundo se torna uma superfície anônima, perde em realidade e ganha na força estética do que é apresentado como um jogo "nós & inimigo". Os canais de TV parecem afogar-se em um amontoado de rolling news, cuja veracidade nem chega a ser questionável, tamanha a artificialidade.

Acopladas de trilhas sonoras de mísseis e canhões, as reportagens sem notícias vagueiam pela tela 24 horas por dia, como em um Blade Runner deslocado no tempo. E, ao contrário do tempo, que é sempre o mais presente possível - a ditadura do agora - o espaço é, para os jornalistas embutidos (embedded) nas unidades militares, um tabu.

Tão perto, tão longe

- Levados às frentes de combate, tudo é permitido a eles, menos revelar onde aquilo que testemunham acontece. Tendo como ponto de partida uma percepção que se assemelha à de reféns de um seqüestro, esse novo gênero de correspondentes de guerra torna-se alheio à geografia, falando e comentando "eventos" fora do espaço e, logo, fora da história. "Se a verdade, na última Guerra do Golfo, ficou escondida atrás de uma cortina de imagens abstratas, ela é dessa vez ofuscada por uma hiper-concentração dessas imagens", analisa o diário alemão Süddeutsche Zeitung.

Big Brother

da crueldade -
Frente à tela da TV, tem-se a impressão de estar diante de um Big Brother da crueldade, em que se é atropelado pela velocidade de luzes, chamadas "por acaso" de bombardeios aéreos. Os conglomerados urbanos sobre os quais essas bombas, que nos parecem partes de um videogame, caem, transformam-se em massas abstratas e indefinidas, que, no entanto, devem ser eliminadas, por serem "inimigas".

"O mundo todo espera que a explosão aconteça. Uma guerra limpa, sem massacres, sem mortos? (...) Reportagens formadas por animações em vídeo, que mostram como canhões de guerra atravessam rios, cercam cidades e são capazes de destruir com exatidão postos militares. Um jogo empolgante, como se bonecas Barbie tivessem movimentado excessivamente o joystick", observa o diário Frankfurter Rundschau.

A outra face -

E exatamente nesse momento, quando o conflito parecia tão passível de controle, tão virtual como nunca, o canal árabe de televisão Al-Jazeera, por sua vez também instrumentalizando o poder das imagens, levou ao ar os rostos abatidos de prisioneiros de guerra norte-americanos.

Escancarou-se a "outra face da guerra", aquela dos civis, entre eles milhares de crianças mortas e feridas, e a dos jovens norte-americanos capturados pela frente iraquiana. Enquanto a CNN boicotava a realidade, apresentando a guerra como uma animação em computador, o canal Al-Jazeera abandonou qualquer princípio ético, jogando os horrores sem filtros na roleta da mídia mundial.

De repente, os direitos humanos -

Foi quando Rumsfeld, Bush e cia. resolveram repentinamente se lembrar de que existe, sim, a Convenção de Genebra, que impede a exibição de prisioneiros de guerra. O ver-se confrontados com um documento de que a guerra é real parece ter-lhes aguçado os sentidos para o fato de que além de mísseis e caças, a violência de um conflito armado é também sentida pelo indivíduo, ainda não completamente exterminado dentro do mundo bélico-tecnológico.

Depois de rolarem seus tanques por cima do Conselho de Segurança da ONU, apresentarem ao mundo a guerra como se fosse um enlatado produzido em seus estúdios de cinema e ignorarem eles próprios o artigo 13 da Convenção de Genebra em relação aos prisioneiros em Guantánamo, os Estados Unidos da América podem ter sentido, pela primeira vez, que o que se passa no Iraque trata-se realmente de uma guerra. Com todos esses abomináveis e escabrosos lados dos quais o canal árabe certamente poderia ter poupado seus espectadores.