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Carmen Stephan: Brasil, contaminações e influências

Joaquim Sciarra22 de agosto de 2013

Uma das mais jovens entre os alemães que participam da Bienal do Livro do Rio, Carmen Stephan tem uma relação estreita com o Brasil. Ela escreveu "Mal Aria", uma história sobre vida e morte, contada por um mosquito.

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Carmen StephanFoto: Jonas Unger

Carmen Stephan nasceu em Munique, Baviera, em 1974, e trabalha há anos como jornalista para um dos mais importantes jornais do país, o Süddeutsche Zeitung. Como correspondente, viveu alguns períodos fora da Alemanha, entre outros em Madri e Dublin.

No entanto, um dos períodos mais definidores para sua escrita foi o tempo que passou no Rio de Janeiro, entre 2002 e 2005, escrevendo e pesquisando o trabalho do arquiteto Oscar Niemeyer. Foi para uma entrevista para o Süddeutsche Zeitung com o arquiteto brasileiro que Carmen Stephan viajou ao Brasil pela primeira vez.

"Estava tudo marcado, mas ao chegar ao seu escritório, no Rio, ele mudou de ideia e disse que 'talvez amanhã'. Foi toda uma semana no Rio, sempre ouvindo o 'talvez amanhã', mas isso me deu a oportunidade de passar várias horas nada perdidas em seu escritório e perceber como todos aqueles grandes projetos emanavam desse pequeno e enérgico homem. Fiquei fascinada", disse a autora por telefone à DW Brasil.

Foi só quando o sobrinho de Niemeyer, o também arquiteto João Niemeyer, ajudou, a jornalista acreditou que a entrevista sairia. "Fui com toda a família de Niemeyer para uma visita ao Museu de Arte Contemporânea de Niterói, onde Niemeyer faria uma palestra algo espontânea. Mas, mas como das outras vezes, Niemeyer decidiu que faria a palestra 'talvez amanhã'".

Estágio com Niemeyer

Ao fim, à pergunta se poderia fazer um estágio no escritório de Niemeyer, Carmen Stephan ouviu um "sim" que também soava como "talvez amanhã", mas decidiu deixar o emprego em Munique e seguir para o Rio de Janeiro, onde passou alguns meses trabalhando e ajudando entre os escritórios de Oscar Niemeyer e João Niemeyer. Desde então, vive entre viagens pelo Atlântico, entre Alemanha e Brasil.

Desta experiência surgiu seu primeiro livro, a coletânea de textos Brasília Stories (2005), com fotos feitas pela brasileira Gleice Meire. A autora se interessa especialmente pela relação entre a vida interior de suas personagens e a influência da arquitetura e paisagem ao redor. Neste aspecto, Brasília apresenta um cenário ideal para Stephan, com seu planejamento idealizado e construído na ideologia utópica de uma sociedade nova a partir de uma organização nova da vida social das pessoas. Mas Stephan não queria fazer um livro sobre a arquitetura de Brasília.

"Há muitos livros sobre os prédios de Brasília, com fotos e monografias sobre o trabalho de Niemeyer. Mas meu interesse era mais pela maneira como esta nova cidade influía na vida dos seus moradores", diz Carmen Stephan. Celebrada por muitos artistas brasileiros, como os poetas concretos de São Paulo – que viram nela um símbolo da modernização do país, a cidade gerou também estranhamento e espanto em outros escritores brasileiros, como Clarice Lispector.

Foi justamente de Lispector que Carmen Stephan leu o primeiro texto mais poético sobre a cidade, por recomendação de amigos, no texto "Descobrindo Brasília", no qual a brasileira escreve: "Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado. Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para aquele mundo. Nós somos todos deformados pela adaptação à liberdade de Deus. Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar, e depois o mundo deformado às nossas necessidades. Brasília ainda não tem o homem de Brasília."

Já se discutiu muito que tipo de literatura Brasília produziria, se seus escritores gerariam algo em seu molde. Carmen Stephan, com seu Brasília Stories, entrou para este rol crescente de autores fascinados pela cidade.

Reconhecimento crítico

Mas a atenção da crítica especializada alemã voltou-se para a autora bávara a partir da publicação de seu romance de estreia, lançado em 2012 e intitulado Mal Aria. Recebendo por ele o Prêmio literário da Fundação Jürgen Ponto do mesmo ano, o romance foi descrito como um romance excitante e mortalmente viciante, mas que não evita inicialmente ser tomado com uma dose nada insignificante de desconfiança. Uma descrição de sua trama explicita isso: uma jovem alemã que vai ao Brasil estudar, empreende uma viagem com seu namorado, Carl, à Amazônia. Lá, dá-se seu encontro com uma fêmea do mosquito do gênero Anopheles, o que causa a malária.

Este é o jogo do título do romance, que trabalha tanto com a ideia de "maus ares e augúrios", como o nome da doença. O namorado retorna à Alemanha, e a personagem principal inicia seu martírio e peregrinação de hospital em hospital, nos quais o diagnóstico vem invariavelmente errado, já que os médicos acreditam ser um caso de dengue e a medicam erroneamente.

O jogo literário principal de Carmen Stephan no romance, porém, é o de fazer do mosquito que picou sua personagem, o narrador da história. E, nos dias entre a picada e a incubação da doença, é pela perspectiva de um mosquito que o leitor observa a vida de um ser humano. Nesse jogo, o leitor vê-se numa malha de determinismos sem possibilidade de julgamento moral, já que o narrador não vê o sofrimento que causou como crime, mas necessidade.

Eine Geschichte über Leben und Tod. Erzählt von einem Moskito.
"Mal Aria": uma história sobre vida e morte, contada por um mosquito (Fischer Verlage)Foto: S. Fischer

O mosquito-fêmea pergunta: "Por que é sempre o primeiro impulso de vocês o de nos matar? Vocês nasceram assim? Vocês nos classificam como praga, invasores do seu mundo. Já pensaram que talvez seja o contrário pela nossa perspectiva? Lembrem-se que o homem foi criado no último dia. Em certos lugares, o céu já estava tão coberto de mosquitos que luz nenhuma conseguia passar. Vocês compõem números ridículos em comparação com nossos enxames. Vocês são os invasores do nosso mundo."

O que tem causado admiração nos críticos alemães é que Carmen Stephan consiga manter este jogo até o final do romance, sem que pareça mero truque cansativo. O romance tem sido elogiado por "questionar a visão antropocêntrica da literatura". Um leitor brasileiro estará familiarizado com este questionamento, pensando aqui na batalha entre humano e inseto em um dos mais importantes romances brasileiros do século 20, A Paixão segundo GH (1964), de Clarice Lispector. Mas a relação entre mulher e inseto não assume os contornos místicos da obra da brasileira, movendo-se num campo mais político, ainda que as implicações políticas do trabalho de Lispector estejam lá, mais abaixo da pele.

Carmen Stephan vive a maior parte do tempo em Munique. Na Bienal do Livro do Rio, participará de uma mesa-redonda e fará leituras, retornando ao país de Oscar Niemeyer e Clarice Lispector. Seu romance, no entanto, ainda não encontrou editor no país. Um encontro com possíveis editores será certo durante o evento, espera-se apenas que não com um mosquito da malária, ou da dengue.