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Arte inédita da antiga Alemanha Oriental é exposta em Brasília

Marco Sanchez21 de março de 2014

"A arte que permanece" apresenta parte da coleção que o diplomata Francisco Chagas Freitas adquiriu nos anos em que viveu na Alemanha Oriental, de 1984 até o fim do país.

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"Paisagem", de Max Uhlig, um dos grandes amigos do colecionadorFoto: Henrique Luiz (Ausschnitt)

Nos anos em que trabalhou na embaixada brasileira em Berlim Oriental, a partir de 1984, o diplomata Francisco Chagas Freitas investiu em arte e, quase sem querer, tornou-se um dos maiores colecionadores da arte feita na antiga Alemanha Oriental.

"Eu sempre tive interesse por arte, mas era estudante e não tinha dinheiro para comprar. Quando fui morar na Alemanha Oriental, comecei a receber meu salário e a comprar, bem devagar. Através de amigos, conheci artistas que eram proscritos aos olhos da Staatlicher Kunsthandel [órgão que regulamentava a arte no antigo e controlado estado comunista]", diz o colecionador em entrevista à DW Brasil.

Uma parte do acervo adquirido durante esses anos – cerca de cem obras de 40 artistas – pode agora ser vista na exposição A arte que permanece, em cartaz no Museu dos Correios, em Brasília, até 10 de maio. Além de artistas da extinta República Democrática Alemã (RDA), a exposição também conta com brasileiros que produziram ou expuseram em território alemão-oriental entre 1985 e 1991.

Em paralelo ao contexto histórico e artístico, as obras da coleção vêm acompanhadas de histórias e experiências vividas pelo colecionador nos anos em que trabalhou na embaixada na Berlim comunista.

Submundo da arte no comunismo

Depois de um estágio no Paraguai, o jovem Freitas foi mandado pelo Itamaraty para Berlim Oriental, onde trabalhou no setor cultural da embaixada brasileira. Na Alemanha Oriental, duas pessoas foram de extrema importância para o brasileiro iniciar sua coleção.

Kunst - A Arte que Permanece
Alex Flemming foi de extrema importância para o diplomataFoto: Henrique Luiz (Ausschnitt)

"Cheguei em 1984. Um ano depois, o [artista] Alex Flemming veio para Berlim e passou seis meses comigo. Ele era amigo da minha esposa, ainda em São Paulo. Foi um período ótimo. Aprendi muito com ele. Alex tem um olho crítico para arte", diz Freitas.

Outra pessoa muito importante para o colecionador nesse período foi seu ex-chefe, o então embaixador Mario Calábria. "Ele era um grande colecionador de arte contemporânea e tinha uma coleção fantástica de arte alemã e também brasileira", conta.

Assim, o interesse de Freitas por arte contemporânea foi se transformando num fascínio por esse universo de cores, óleos e abstrações que aconteciam atrás de portas fechadas.

"Primeiro conheci o Max Uhlig, depois veio o Flemming, aí conheci a Gerda Lepke, e um foi me apresentando para o outro. Era o pessoal do submundo da cultura da RDA. Todos eram avant-garde e opositores à escola do realismo socialista. Muita gente me ajudava porque eu era o único que comprava arte desse pessoal. Os cidadãos da Alemanha Oriental tinham receio de visitá-los. Seu público era pequeno", explica o colecionador.

A simpatia e o interesse de Freitas foram aumentando seu círculo pessoal no submundo da arte da Alemanha Oriental. Através desses contatos pessoais, ele começou a construir sua incrível coleção, já que muitas vezes não era fácil chegar a esses artistas.

Kunst - A Arte que Permanece
Para o colecionador, Gerda Lepke é um grande nome na história da arte alemãFoto: Henrique Luiz (Ausschnitt)

"Eles acreditavam na arte. Eram sonhadores. Viver de arte na RDA era muito difícil. Quase todos tinham outra profissão. O Peter Graf era motorista de caminhão, o Max Uhlig fazia impressão de gravuras para outros artistas. Depois da queda do Muro, muitos deles ficaram muito importantes", relembra o brasileiro.

Histórias pessoais

Como o comércio de arte quase não existia na antiga Alemanha Oriental, a maior parte da coleção de Freitas foi adquirida dos próprios artistas. "Uns 90% das obras foram compradas diretamente na casa dos artistas, já que só existiam as galerias que tinham a benção do Estado", recorda.

Além dos artistas berlinenses, o brasileiro viajava constantemente para Dresden, um importante polo artístico na Alemanha Oriental. "A maior parte da minha coleção é de artistas da Escola de Dresden. Eu comprei uma paisagem do Max Uhlig em Berlim e o Mario Calábria, que era amigo dele, fez uma carta de apresentação, e eu fui visitar o Uhlig em Dresden. Sempre daquela antiga maneira da RDA, tudo com muita cautela porque a arte não podia circular abertamente", diz o colecionador.

Além dos artistas alemães, a exposição também conta com obras de brasileiros que Freitas, em sua maioria, adquiriu na Alemanha no mesmo período. "Doze artistas brasileiros vão participar da exposição em Brasília. Além do Flemming, tem o trabalho do Manfredo de Souzanetto, que é muito impactante. Artistas que moraram em Berlim no período que vivi por lá, com o Eneas Valle e a Cristina Pape, ou que expuseram na cidade, como o Roberto Lúcio de Oliveira, também estão na mostra. No total são 40 artistas e 103 obras", explica.

Freitas não consegue destacar nenhuma obra ou artista, mas relembra algumas histórias pessoais que são parte essencial de seu acervo, que foi sendo construído aos poucos, de uma maneira espontânea e despretensiosa.

"Quando fui pela primeira vez ao ateliê do Max Uhlig, comprei 13 obras. Ele disse que nunca tinha vendido tantas no mesmo dia. A Gerda Lepke é uma amiga muito querida, que certamente será um grande nome da história da arte alemã. O Peter Makolies, além de ser um grande escultor, é como um irmão para mim", conta.

Kunst - A Arte que Permanece
Retrato de Francisco Chagas Freitas feito por Peter HerrmannFoto: Henrique Luiz (Ausschnitt)

Outra obra muito especial para o colecionador é Goodbye Dresden, um fantástico painel feito por Wolfgang Scholz. "Foi a última obra que ele fez na cidade. Ele imigrou para o México e, uma semana depois, o Muro caiu. É uma pintura muito impactante que eu acho que nunca foi exposta. Quase todas as obras são inéditas, tanto no Brasil quanto na Alemanha", afirma.

Hoje, Freitas quase não compra arte. Ele diz que a realidade é outra. "A situação política do país na época permitia isso. Eu era um maluco que foi para lá, não tinha medo de gastar dinheiro nem da polícia secreta e os artistas precisavam de ajuda. Não comprei essas obras para fazer dinheiro", comenta.

Quando retornou ao Brasil, em 1991, Freitas trouxe na bagagem um legado cultural inestimável e único, resultado de uma dedicação e um envolvimento singular com os protagonistas de uma Alemanha que vivia atrás da Cortina de Ferro.

"É um prazer olhar nas paredes e saber que cada obra que tenho vem com uma história. Como foram aquisições pessoais, e não em galerias, elas têm um sentido mais puro", diz o colecionador.