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A fronteira do dizível

Soraia Vilela27 de setembro de 2002

É a opinião pública quem deve discutir onde se situa a fronteira entre o dizível e o tabu?

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Michel Houellebecq responde a processo por chamar o islamismo de "religião estúpida"Foto: dpa

No próximo 22 de outubro, a Justiça de Paris dará o veredito: Michel Houellebecq — o escritor francês dos escândalos, que já destruiu em seu primeiro romance o movimento de 68 e a civilização ocidental — será condenado ou absolvido por ter chamado o islamismo de "religião estúpida". Considerado por parte da crítica um escritor cuja obra beira o medíocre, Houellebecq prima pela provocação.

Em seu último romance, Plataforma, um dos personagens dispara: "Cada vez que eu percebia que um terrorista palestino, uma criança palestina ou uma grávida palestina tinham sido mortos por uma bala na Faixa de Gaza, sentia um tremor de entusiasmo com o pensamento de que havia um muçulmano a menos."

Escândalos descartáveis —

Plataforma execra o islã e ao mesmo tempo desfila um elogio ao turismo sexual, unindo em um só volume material dobrado para a produção do escândalo descartável, ou seja, um prato cheio para a mídia. Ainda não satisfeito, Houellebecq soltou em entrevistas à revista literária Lire e ao jornal Le Figaro, que "o alcorão é algo repugnante" e que "o islamismo é a religião mais babaca de todas".

Para a comunidade muçulmana na França, Houellebecq extrapolou. Duas organizações islâmicas e as grandes mesquitas de Paris e Lyon entraram com uma ação contra o escritor. Seu julgamento, que pode resultar em um ano de prisão ou pagamento de uma indenização por danos morais, começou em Paris no último 17 de setembro. O salão abarrotado de curiosos, entre eles os representantes do Movimento Nacional Republicano, de extrema-direita, que foram convidados a deixar o recinto após declarações de teor racista às câmeras de TV presentes no local.

Liberdade de expressão —

Por outro lado, um documento assinado por intelectuais franceses apóia o escritor e, com isso, a "liberdade de expressão". Perante o tribunal, a defesa de Houellebecq é reforçada por depoimentos dos escritores Fernando Arrabal e Michel Braudeau e por Josyane Savigneau, editora do suplemento literário do diário Le Monde.

O argumento do próprio Houellebecq perante a Justiça francesa é calcado na postura de que suas declarações não se voltam contra os muçulmanos como indivíduos, mas contra o islã em si, que ele despreza. Para o representante da mesquita parisiense, Dali Boubakeur, o que o escritor faz é humilhar, com seus textos e declarações, milhões de franceses muçulmanos.

Necessidade do exemplo —

Apesar da virada de milênio, continua-se a viver em tempos nos quais divergências religiosas matam. Tanto pela pressão cotidiana em territórios ocupados, quanto por aviões desembestados em direção a arranha-céus. O caso Houellebecq, se visto sob esta perspectiva, parece ser levado adiante pela comunidade muçulmana mais pela necessidade do exemplo. Uma espécie de aviso prévio.

Concretamente, trata-se de uma besteira disparada por um escritor ávido por escândalos ou que, melhor dizendo, já vive deles desde seus romances anteriores Extensão do Domínio da Luta e Partículas Elementares. No entanto, como se vê, o oportunismo da extema-direita enxerga no confronto uma brecha e aproveita-se do caso.

Línguas indomáveis —

Na Alemanha, país cuja história não permite qualquer desvio nesse sentido, declarações ambíguas têm pipocado na vida pública nos últimos tempos. Os envolvidos, no caso, não são mestres da literatura, mas políticos do primeiro escalão. Seja por uma postura acusada de teor anti-semita ou por um comentário crítico à hegemonia norte-americana, a falta de papas na língua colocou recentemente fim às carreiras de dois políticos nacionais.

Bush e Hitler —

Dois dias antes das últimas eleições alemãs, a ministra da Justiça, Hertha Däubler-Gmelin, em conversa com sindicalistas no interior do país, afirmou, segundo um jornal local, que a estratégia de George W. Bush em usar a guerra do Iraque para desviar as atenções da opinião pública dos problemas internos já teria sido "usada por Hitler".

A observação da ministra eclodiu nos quatro cantos do planeta, principalmente nos ouvidos do presidente norte-americano. A partir daí, agravou-se a tensão entre os dois países. O governo em Washington mal acredita que, logo a ministra da Justiça do país, ainda ontem liberto do nazismo pelas forças norte-americanas, se expresse desta forma. Independentemente de estar ou não de acordo com a comparação de Däubler-Gmelin, questiona-se se uma ministra da Justiça teria "o direito" de escancarar sua opinião desta forma.

Liberais anti-semitas —

Outro caso, o do ex-vice-presidente do Partido Liberal alemão, Jürgen Möllemann, foi uma das principais polêmicas que deram tom à campanha eleitoral no país. Möllemann foi acusado de estimular o anti-semitismo, ao atacar com insistência o governo do premiê israelense, Ariel Sharon. Além disso, Möllemann apoiou um deputado de origem síria da bancada liberal, que havia creditado ao governo de Israel "métodos nazistas" e apontado a "influência de um lobby sionista na mídia mundial".

Daqui e dali, seja na literatura ou na política, parece que o fantasma do conflito racial ainda paira sobre o Velho Mundo. Difícil é saber por onde passa a fronteira que divide o respeito à liberdade de expressão — de Houellebecq, Däubler-Gmelin, Möllemann e tantos outros — da necessidade de manter certos tabus, que, afinal, não existem à toa.