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HistóriaGuiné-Bissau

Carmen Pereira e a guerra das mulheres

Marcio Pessôa
30 de agosto de 2014

Carmen Pereira tornou-se o símbolo feminino da luta pela libertação da Guiné. Trata-se da primeira mulher a ocupar a presidência de um país africano e única Presidente da História da Guiné-Bissau.

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Carmen Pereira, na altura comissária política do Comité Inter-Regional do Sul, discursando numa reunião do PAIGCFoto: casacomum.org/Arquivo Amílcar Cabral

Carmen Pereira ingressa na luta pela libertação em 1961, após o seu marido fugir para a Guiné-Conacri, perseguido pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado - Direção Geral de Segurança (PIDE/DGS).

Começa a assumir responsabilidades no movimento quando chega a Conacri. Deixou seus filhos na capital do país vizinho para acompanhar mulheres guineenses das tabancas para uma formação de um ano em Kiev, na antiga União Soviética.

Nesta entrevista à DW África, Carmen Pereira lembra da abertura dos hospitais para atender à população e aos guerrilheiros, da parceira com os médicos cubanos, da participação ativa no recrutamento de mulheres para a frente Sul. Também oferece um testemunho sobre um dos momentos mais tristes do conflito, quando bombas napalm e de fósforo branco foram jogadas sobre as comunidades do interior.

DW África: A senhora recebeu um grupo de mulheres guineenses que deixaram suas casas e se juntaram à guerrilha na base de Conacri. Como foi a preparação destas jovens para o conflito?

Carmen Pereira (CP): Nesta altura, a então União Soviética ofereceu bolsas para 30 raparigas para a formação de enfermeiras, mas não havia ninguém para levar estas raparigas [para a União Soviética]. Sozinhas não poderiam ir porque muitas não percebiam nem o crioulo. Não sabiam ler. Saíram da tabanca. Em uma conversa com um grupo de pessoas, eu comentei que se não fossem os meus filhos, eu mesma levava estas meninas. Nesta mesma tarde, alguém veio até mim, pedindo para que eu as acompanhasse para a União Soviética. Eu relutei. Camarada Cabral perguntou-me então: “Quem tu amas mais: a pátria ou teus filhos? Onde é que está o teu amor?” Eu respondi: “a minha pátria”. E ele: “então, tens que embarcar amanhã de manhã.” Acredita? Eu tive que embarcar para levar estas raparigas à União Soviética para o curso de um ano.

Carmen Pereira e a guerra das mulheres na Guiné-Bissau

DW África: Como era o recrutamento e mobilização?

CP: Funcionava muito bem porque fazíamos uma reunião [com as comunidades] e eu convidava: “Temos que fazer isto! Temos que trabalhar! Temos que lutar! Temos que ir à frente para mostrar aos homens que nós também somos capazes!” Daí, abria-se hospitais com médicos cubanos e jovens raparigas que aprendiam primeiros-socorros. Depois, criamos as brigadas sanitárias. Elas que saíam com o chefe para assistir à população. Na altura, as pessoas não conheciam o hospital. Eram remédios com ervas e folhas. A partir dali, começaram a conhecer a Brigada Sanitária, que fazia campanhas. Depois, mandavam [os casos mais graves] para o hospital. Os militares também mandavam os feridos para o hospital, onde existiam enfermeiras já formadas para os blocos operatórios. Elas davam assistência junto aos cubanos. Mais tarde, eu fui indicada para ocupar o cargo do comissário político. [Acumulei] as duas funções: a saúde e a política.

O comissário tinha que explicar o que o PAIGC quer, as razões da guerra contra o colonialismo. Também tinha que explicar porque teríamos que recolher o material [deixado pelas tropas portuguesas em combate]. O avião bombardeava, os portugueses vinham de carro ou de barco com muito material, mas nós não tínhamos nada. Tínhamos que carregar na fronteira com a [Guiné-Conacri] e transportar de lá até os nossos combates todo o material bélico e mantimentos. [Convencer a população a ajudar voluntariamente] era o trabalho do comissário político. [As pessoas] iam com boa vontade, carregavam os materiais, os medicamentos, fardos de roupa e depois os militares é que dividiam [entre as frentes]. Era uma distância longa, caminhando toda a manhã e tarde.

DW África: O que lhe marcou nos bombardeamentos?

CP: Eu vi pessoas queimadas com o napalm. Há lugares preservados pela população com as marcas dos bombardeamentos para quem quiser ver. Lançavam as bombas napalm sem ter cuidados com as crianças. Quantas pessoas morreram? Em uma visita às Nações Unidas, Cabral levou uma mulher que perdeu um braço e o bebé que carregava perdeu uma perna. Também levou um homem que teve um lado da cabeça queimado. Ele teve que levar estas pessoas para que os integrantes das Nações Unidas acreditassem que os portugueses já estavam lançando bombas napalm. No caso do fósforo [branco], eu vi em uma tarde. Atacaram uma tabanca por volta das seis horas, seis e meia da tarde, quando as pessoas voltavam às suas casas. Aquilo é um caso terrível de ver: a pessoa ali, deitada, a gritar. Pareciam pirilampos porque aquilo penetra até os ossos, deixando uma queimadura. O médico deita água oxigenada e reação é um fumo grande. Consome [a pessoa] até matar. Nesta noite mesmo eu mandei uma carta à Conacri para avisar que já estavam a utilizar o fósforo branco. Cabral mandou uma delegação para fazer a inspeção e tudo foi confirmado por um médico cubano.

DW África: Falando de personalidades. O líder Amílcar Cabral, para começar.

Carmen Pereira, Funktionärin des Interregionalen politischen Komitees der PAIGC
Carmen Pereira empunhando a sua armaFoto: casacomum.org/Arquivo Amílcar Cabral

CP: Foi um grande líder, foi um homem honesto e capaz. Fez a luta com seriedade e capacidade e, por isso, o mataram. Ele castigava, mas sabia perdoar. Os perdoados foram os elementos que o mataram.

DW África: E como era o combatente Nino Vieira?

CP: Ele era o comandante da frente Sul - um guerreiro extraordinário, um guerreiro de grande conhecimento. [Nino] era corajoso. Atacava sem sentir medo. Quando recebemos carros de combate, ele entrou com os carros blindados até o quartel de Bedanda. Os portugueses ficaram surpresos porque ele entrou no quartel, bombardeou e seguiu até a fronteira porque não havia onde deixar o blindado.

Foi o autor da histórica tomada do quartel de Guiledge, onde os portugueses tinham tudo. Era um local altamente fortificado. Ele disse para mim: “eu vou, mas tu tens que garantir a retaguarda com médicos e enfermeiros por causa dos nossos camaradas.” Mas não fiz nenhum trabalho. Uma mulher chegou à base informando que era necessário parar de mandar mais armas porque os portugueses já haviam corrido. Avisamos Nino que, ao invés de mandar mais armas, era apenas necessário mandar pessoas. Este foi o ataque “Amílcar Cabral”.

DW África: Há nomes que deveriam ter maior destaque nesta história?

CP: Temos a Titina Silá. Ela foi assistir ao funeral de Cabral e na volta foi atacada. Ela andava sempre equipada com botas, cinto, pistola. Caiu num rio e afundou com o peso do equipamento. Os restos dela estão onde estão também os restos de Cabral, Chico Mendes, Osvaldo Vieira – que eram grandes combatentes. Osvaldo caiu em uma emboscada, mas antes de morrer escreveu para Cabral com o seu sangue: “eu sei, vou morrer porque a ferida que tenho não vai sarar. Mas continua com a guerra e faz com que tomem a independência e que os portugueses voltem a para a terra deles.” Para a namorada, também com sangue, ele escreveu: “não estou a sentir-me bem. Sei que vou morrer. Encontramo-nos na eternidade”.

Carmen Pereira, a combatente guineense

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